Reflexões
sobre a crise
I.
Introdução
Um dos erros mais frequentes nas interpretações habituais da crise actual é
que seria uma crise financeira que contaminaria a esfera real da economia. Na
verdade, é uma crise do capital, em que um dos fenómenos mais visíveis e
mediatizados surgiu na esfera financeira devido à extrema financiarização do
capitalismo contemporâneo. Vemo-la como uma crise sistémica, que afecta o
próprio coração do sistema capitalista, o centro de poder das altas finanças,
que controla a acumulação há mais de três décadas. Não é um fenómeno
conjuntural e sim estrutural. A série de repetidas crises
monetário-financeiras que golpeou sucessivamente diferentes economias desde
há 30 anos faz parte da mesma crise – desde o "golpe de Estado
financeiro" dos Estados Unidos em 1979: o México em 1982, crise da
dívida nos anos 80, Estados Unidos em 1987, União Europeia, incluindo a
Grã-Bretanha, em 1992-1993, México, em 1994, Japão, em 1995, a chamada Ásia
"emergente" em 1997-1998, Rússia e Brasil, em 1998-1999, bem como a
Costa do Marfim nesse mesmo momento, novamente os Estados Unidos em 2000, com
o estouro da bolha da "nova economia", depois a Argentina e Turquia
em 2000-2001... Crise que se agravou recentemente, especialmente desde
2006-2007, a partir do centro hegemónico do sistema, e que se generalizou
como uma crise multidimensional; sócio-económica, energética, política,
climática, alimentar, inclusive humanitária e, claro, também financeira: na
Islândia, na Grécia, na Irlanda, em Portugal ... Não é o " beginning of
the end of crisis " entendido pelos conselheiros do presidente Barack H.
Obama. Não é uma crise de crédito normal e corrente, nem tão pouco uma crise
de liquidez passageira, mediante a qual o sistema encontraria o modo de se
recompor, reforçar-se-ia e recomeçaria "normalmente" – com um novo
auge das forças produtivas e no quadro das relações sociais modernizadas.
Tudo isto parece mais grave, realmente muito mais grave...
II. Parte Um: a referência a Marx
A. Começo por dizer que, para analisar esta crise capitalista em particular,
assim como as crises capitalistas em geral, a referência a Marx continua a
ser, hoje, absolutamente fundamental.
1. Porque o marxismo, ou os marxismos (incluindo certas mesclas marxizantes),
nos fornecem para esta análise, ferramentas, conceitos, métodos, teorias,
assim como soluções políticas muito poderosas – e isto apesar das
dificuldades e incertezas. É o quadro teórico mais poderoso e mais útil para
compreender e analisar a crise e, especialmente, para apreender as
transformações actuais do capitalismo e tentar explicar as transições
pós-capitalistas que se abrem e iniciam – pelas razões e nas condições que
aqui mencionarei.
2. Para aquelas e aqueles que – num determinado seminário – tiveram o
desplante de não se convencerem e também de tratarem os marxismos como coisa
pouca, acrescentaria que pouca coisa é melhor do que nada; porque o facto
(incrível) é que não existe uma teoria da crise na corrente actualmente
dominante em economia, ou seja, a mainstream neoclássica. Ou pior: para esta,
a crise não existe como elemento da teoria. É tão verdade que a maioria das
grandes enciclopédias "ortodoxas" não têm nem capítulo nem nenhuma
entrada para "crise". Na teoria (para a economia padrão:
formalização matemática) ou no empirismo (para esta mesma economia padrão: a
econometria), o tema da crise pouco interessa: têm-lhes dedicado muito poucos
trabalhos académicos da corrente neoclássica – incluídasas suas fronteiras
(internas) "neo- keynesianas".
Para a corrente mainstream , a moeda não está integrada no circuito, nem na
dinâmica de reprodução do capital: valor igual a preço; taxa de lucro igual à
taxa de juros; em microeconomia, não existe moeda no equilíbrio geral versão
Arrow-Debreu; em macroeconomia, a moeda em geral é considerada como neutra,
de modo que o equilíbrio é automático e a crise está proibida por definição.
É importante, pois, reter no espírito, e desde o início, que a ideologia
científica do capitalismo não toma a crise como objecto de estudo e,
portanto, não pode entender a crise do capitalismo realmente existente. Isso
não quer dizer que, sobre este ou aquele assunto, certas análises
neo-neoclássicas, não sejam, infelizmente, melhores do que as marxistas,
pois, sobre estes pontos, os ortodoxos podem entender melhor o que se passa
(por exemplo: quanto às transmissões dos efeitos da esfera financeira para a
esfera real), ou inclusive em finanças [finanças matemáticas], onde os
marxistas estão pouco presentes).
Portanto, há que ler Marx para não nos desconectarmos, mas, igualmente, há
que ler a literatura dos nossos inimigos, incluindo a imprensa do
establishment , e ainda mais quando as fracções das classes dominantes
discutem entre si, como se os povos não estivessem ali ou não entendessem
nada, e quando, ao contrário da maioria das direcções partidárias e sindicais
"de esquerda", não abandonaram a defesa das suas posições de
classe, nem uma certa solidariedade internacional (digamos antes, inter-imperialista).
Mas, como a crise é um facto muito difícil de negar na prática, aqueles
dentre os neoclássicos que se interessam por ela, analisam-na a partir de
factores externos aos mercados e perturbadores dos mecanismos automáticos de
correcção pelos preços: as intervenções do Estado, os "bugs"
informáticos (visto que a maioria das ordens de transacções financeiras
passam por computadores, com tempos de reacção medidos em micronésimos de
segundo (em nano-segundos), ou os excessos no comportamento de determinados
agentes (as fraudes Ponzi estilo Madoff ou o buraco do Sr.Kerviel).
Mas, de facto, a especulação não é um excesso ou um erro da corporate
governance ; é uma poção mágica contra o mal estrutural do capitalismo, um
remédio para contrabalançar a tendência à queda da taxa de lucro e
proporcionar saídas para as massas de capital que já não consideram rentável
o investimento na produção – sendo a explosão das "bolhas" o preço
a ser pago (ou seja, que os povos têm de pagar). Na visão ortodoxa, a concentração
da propriedade privada e a lógica de maximização do lucro individual não são
considerados problemáticos. A concepção neoclássica do Estado é a de uma
entidade separada da esfera económica e não dominada pelos interesses do
capital. Existem sindicatos, pelo menos em teoria, mas não a luta de classes.
Obviamente temos de nos afastar de tais interpretações, porque sabemos que as
crises fazem parte integrante da dinâmica contraditória da reprodução
ampliada do capital.
3. Provoquemos um pouco: as heterodoxias voltam a ganhar força logo que
regressam a Marx. É o caso de Keynes. Na sua crítica aos neoclássicos, Keynes
extraiu algumas das suas ideias de um fundo teórico comum a Marx. Os dois se
encontram numa rejeição comum da Lei de Say. Keynes, em certo sentido, volta
a uma teoria do valor-trabalho, mas sem a desenvolver, nem falar de
exploração. Inclusive chega a retomar, no Treatise on Money , os esquemas de
reprodução do Livro II (provavelmente sem o saber, porque na verdade nunca
leu Marx, mas conhecia o russo Tugan-Baranovsky especialmente a sua Crises
industriais na Inglaterra ), para abordar o problema da crise sob o ângulo
monetário, à maneira das teorias do ciclo de negócios da época (e, portanto,
de uma maneira muito diferente de Marx), e tudo para concluir que é a
insuficiência do investimento (e não da poupança) que gera a crise.
Tal como Marx, Keynes vê o capitalismo desembocar num colapso por razões
endógenas ao sistema. E olhando um pouco mais de perto, a causa última da
crise, segundo Keynes, confirma a análise marxista: o que explica a crise
para além da insuficiência do investimento (devido a uma diminuição na
eficácia marginal do capital, ela própria ligada à obsolescência do capital e
eventualmente acentuada pelo aumento da taxa de juros) é, em última análise,
a concorrência capitalista – ou seja, o que Marx chamou as contradições
internas do capitalismo. Em Keynes, a definição do lucro é muito mais próxima
de Marx do que dos neoclássicos, num esquema em que, se o lucro baixa, as antecipações
degradadas fazem baixar o investimento (Kalecki teria tido razão em corrigir
dizendo: as antecipações fazem baixar os planos de investimento), que é o que
faz entrar a economia em crise, a qual é caracterizada por um equilíbrio sem
pleno emprego e sem mecanismos de ajuste espontâneo do mercado.
Portanto, convém ir mais além do exame da questão da repartição do valor
adicionado (entre salários e lucros), tal como faz a maioria dos –verdadeiros
ou falsos – keynesianos.
B. Que interpretação marxista da crise?
1. A crise em termos marxistas interpreta-se como uma crise de
sobre-acumulação de capital. Desde há vários anos, alguns de nós têm
sustentado a inevitabilidade de uma desvalorização do capital (brutal e de
grande amplitude). Esta crise tinha que chegar... Fundamentalmente, pode ser
explicada por uma sobre-acumulação de capital decorrente da própria anarquia
da produção, que leva a uma pressão para a baixa tendencial da taxa de lucro
quando as contra-tendências (incluindo as novas contra-tendências, ligadas,
como se verá, aos novos instrumentos financeiros) acabam por se esgotar. E
esta sobre-acumulação manifesta-se através de um excesso da produção
vendável, não por causa de uma escassez de pessoas com a necessidade (ou o
desejo) de consumir, mas porque a concentração das riquezas tende a excluir
da possibilidade de aquisição de bens a uma proporção cada vez maior da
população. Mas em vez de as vermos como uma superprodução padrão de
mercadorias, o auge do sistema de crédito permite ao capital acumular-se sob
a forma de capital-dinheiro, o qual pode apresentar-se sob formas cada vez
mais abstractas, irreais, fictícias.
2. O conceito de "capital fictício" parece-me ser o mais importante
para a análise da crise. Tanto o seu princípio básico – a capitalização de
rendimentos decorrentes de uma mais valia a receber – como algumas formas sob
as quais pode ser encontrado (capital bancário, acções da bolsa, dívidas
públicas ...) já foram identificados por Marx na sua época. Marx esboçou o
seu estudo, relacionado com os do capital portador de juros e o do
desenvolvimento do sistema de crédito capitalista, na secção 5 do Livro III
de O Capital , especialmente a partir do capítulo XXV, e especialmente no
capítulo XXIX ("componentes do capital bancário "), e até ao
capítulo XXXIII.
As ideias não estão acabadas – nunca estão. Apesar dos trabalhos dos grandes
autores; as coisas mudaram muito (a moeda mudou de forma para se tornar ainda
mais imaterial; o mercado de câmbios ou divisas expandiu-se extraordinariamente
num regime desligado do ouro). Mas Marx deixou-nos elementos que permitem
apreender os movimentos fictícios do capital, que integram o sistema de
crédito e o capital monetário, cuja análise conduz aos da reprodução ampliada
em estreito contacto com o desenvolvimento exorbitante de formas cada vez
mais irreais do capital, enquanto fontes de valorização autonomizadas,
aparentemente separadas da mais-valia, ou apropriadas sem trabalho, como
"por artes mágicas". Marx falará aqui de capital a funcionar como
um "autómato" – talvez se pudesse dizer como um
"autocrata" – tal como disse [Marx entenda-se], em outro lado,
sobre a máquina do Estado.
O lugar de formação por excelência do capital fictício situa-se no sistema de
crédito, que liga a empresa capitalista ao Estado capitalista; e o que se
encontra nesta intersecção são as bolsas, os bancos, mas também os fundos de
pensões, fundos de investimento especulativos (ou hedge funds , localizados
em paraísos fiscais) e outras entidades similares. Os actuais vectores
privilegiados do capital fictício são a titularização (que transforma activos
[por exemplo, créditos] em títulos financeiros) e os intercâmbios de produtos
derivados, que são "potências" do capital fictício.
3. Porém, aqui, temos que resolver muitos e delicados problemas teóricos e
empíricos. Problemas teóricos. Exemplos: distinguir as várias fontes de
capital fictício, segundo o seu suporte e grau de desvinculação da esfera
real. Ou para mostrar que os benefícios de capital fictício também são reais
. Ou mostrar que os lucros do capital fictício também são reais. Ou mostrar
como estes "lucros fictícios" (reais) podem ser assimilados à acção
de uma contra-tendência à queda da taxa de lucro. Problemas empíricos:
demonstrar igualmente a origem dos lucros fictícios. Ou chegar a recalcular
as taxas de lucro e saber qual é o lugar do capital fictício na correcção das
taxas de lucro. Ou como é repartida a mais-valia entre as diferentes fracções
capitalistas...
O capital fictício é de natureza complexa, dialéctica, ao mesmo tempo real e
irreal. A sua natureza é em parte parasitária, mas este capital beneficia de
uma distribuição de mais valia (a sua liquidez dá ao seu titular o poder de
convertê-la, sem perda em capital, em moeda , a "liquidez por excelência").
E este capital alimenta uma acumulação de capital fictício adicional como
meio da sua própria remuneração.
De um modo mais geral, um dos problemas mais graves a este respeito é a quase
impossibilidade de formalização (seja-se marxista ou não em economia), sem se
ser forçado a separar as esferas real e financeira; o que, na verdade, não é
muito satisfatório. Mesmo que seja verdade que a forma-mercadoria e a
forma-moeda devem ser separadas para acabar por tornarem-se inseparáveis.
Voltemos às origens da crise ...
III. Parte dois: origens, manifestações e efeitos da crise
1. As origens da crise A. As origens financeiras
a) A crise que eclodiu no sector subprime do mercado imobiliário dos EUA
havia sido preparada por décadas de super-acumulação de capital fictício. É
necessário apreender esta crise numa perspectiva de longo prazo no
agravamento das disfunções dos mecanismos de regulação do sistema mundial sob
a hegemonia dos Estados Unidos, pelo menos desde a sobre-acumulação de
capital-dinheiro dos anos 1960, ligada ao défice dos EUA (causado, em parte,
pela Guerra do Vietname), até às insustentáveis tensões sofridas pelo dólar e
a multiplicação de eurodólares (depois petrodólares) nos mercados
interbancários.
b) Neste processo, certos acontecimentos tiveram um papel fundamental, entre
os quais podemos encontrar, no mercado de câmbios, o desmantelamento dos
acordos de Bretton Woods com a decisão dos Estados Unidos em 1971-1973 de não
os respeitar mais, abandonar a conversibilidade do ouro e desmonetizar o
ouro, portanto, desmantelar o sistema do padrão-ouro no tempo de Nixon (e
Paul Volcker, hoje conselheiro do presidente Barack Obama), e flexibilizar os
regimes de taxas de câmbio.
Daí as grandes ondas de desregulamentação dos mercados monetários e
financeiros do final dos anos 70, especialmente com a
"liberalização" das taxas de câmbio e taxas de juros. A crise da
dívida dos países do Sul resulta da subida das taxas de juro por parte do Fed
em 1979, o "golpe de Estado financeiro", pelo qual as altas
finanças, principalmente norte-americana voltam a tomar o poder da economia
do mundo.
Nas origens profundas da crise estão actuando todos estes processos de
desregulamentação (e, portanto, de re-regulação pelos oligopólios
financeiros) e de integração dos mercados financeiros no seio de um mercado
globalizado, os quais deslocarão o centro de gravidade do poder mundial para
a alta finança, e lhe permitem impor os seus ditames a toda a economia.
c) Nesta nova era "neoliberal", os mercados financeiros foram
modernizados, particularmente através do desenvolvimento de instrumentos de
cobertura; instrumentos que se fizeram necessários devido à flexibilização
dos intercâmbios e das taxas de juro nos mercados cada vez mais integrados.
Quero mencionar aqui os produtos mundiais derivados, ou seja, de contratos
que suportam transacções, sejam contratos firme (organizados a longo prazo
[os futures ]), de contratação directa, ou contratos de comum acordo ou por
adiantado [os forwards ]), por intercâmbio de fluxo, ou seja, contratos de
permuta financeira [os swaps ] ...), sejam opcionais, e que fixam os futuros
fluxos financeiros em função das variações de preço dos activos subjacentes,
que podem ser uma taxa de câmbio, uma taxa de juros, o curso de acções ou de
matérias-primas, ou um evento futuro probabilizável. São ferramentas de
cobertura ( hedge em inglês), mas que de facto servem, na maioria das vezes,
como estratégias de especulação, jogando com o "efeito de alavanca"
ao correr riscos a partir de investimentos conjuntos limitados; especialmente
quando se trata de híbridos e dão lugar a vendas a descoberto sem
contrapartidas (ou short sells ) – em teoria, as operações mais arriscadas
podem levar a perdas matematicamente infinitas (por exemplo, com opções de venda
ou put ).
De onde se depreende que os montantes correspondentes à criação desse capital
fictício superaram muito depressa e amplamente os destinados à reprodução do
capital produtivo. Exemplo: em 2006, o valor anual das exportações era igual
a três dias de intercâmbios de OTC ou over-the-counter, contratos "
off-exchange " negociados sem intermediários com antecedência, portanto
fora da bolsa – 420 mil milhões de dólares intercambiados diariamente. Este
valor não significa nada, ou pelo menos, não nos diz nada. Mas estes 4,2
teradólares são movimentados por um número muito restrito de oligopólios
financeiros, os primary dealers a que o Fed chama o G15: Morgan Stanley,
Goldman Sachs e outros 13.
São, acima de tudo, o que se chama de desvios de crédito, com montagens muito
complexas de tipo swaps de dívida de crédito (CDS) ou dívidas ligadas a
activos (CDO), que levantaram problemas, transformando completamente a visão
tradicional do crédito e pondo em jogo vários graus ou vários "potências"
de capital fictício [as CDO de CDO ou CDO²]) ?– problemas dos quais,
obviamente, ainda não saímos uma vez que uma das últimas e mais recentes
inovações em finanças tem sido as CDO de CDO ², ou seja, as CDO ao cubo; as
quais, obviamente, vão ser trocadas fora da bolsa, registadas fora do balanço
e criadas quase sem regras prudenciais.
B. As origens reais
a) Mas, também e acima de tudo, convém entender a crise na articulação das
esferas financeira e real: a longo prazo, as contradições que revelou
mergulham as suas raízes no esgotamento dos motores de expansão após a
Segunda Guerra Mundial, que trouxe consigo estas profundas transformações
financeiras. Na esfera real, as formas de extracção de mais-valia e de
organização da produção haviam chegado aos seus limites e tiveram que ser
substituídas por novos métodos (do tipo Kanban) e re-impulsionadas pelo
progresso tecnológico (informática, robótica), que transformou profundamente
as bases sociais da produção – sobretudo, por uma substituição do trabalho
pelo capital. Após a longa sobre-acumulação cada vez mais concentrada na
esfera financeira, sob a forma de capital-dinheiro, o excesso de oferta
acentuou a pressão para a baixa da taxa de lucro observada desde final dos
anos 1960.
b) E para tentar resolver – na ficção – este problema, nos EUA, o Fed, onde
dominavam as teorias monetaristas, aumentou as suas taxas de juros de forma
unilateral nos finais dos anos 1970, marcando a entrada na chamada era do
"neoliberalismo" (que continua a ser uma palavra vazia se não estiver
dotada com um conteúdo de classe e relacionada com o poder dos oligopólios
das altas finanças modernas).
Alguns dos principais factores da crise são de natureza "real" e
estão ligados à austeridade: a crise das subprimes , pela qual muitas
famílias pobres se depararam com dívidas impagáveis, também se explica pelas
políticas neoliberais levadas a cabo desde há mais de 30 anos e agora crescem
com todo o seu rigor, desfazendo os salários, flexibilizando o emprego,
massificando o desemprego, degradando as condições de vida; políticas que têm
destruído a procura e accionado as molas que a tornam artificial e
insustentável.
c) Portanto, o crescimento no regime neoliberal só pode ser mantido
estimulando fortemente a procura do consumo privado e disparando ao máximo as
linhas de crédito – e é este pico exorbitante do crédito que acaba por
revelar a crise de super-acumulação na sua versão actual. Numa sociedade em
que massas de indivíduos cada vez mais numerosas são excluídas e sem
direitos, a ampliação de saídas proporcionadas aos proprietários do capital
só pode retardar a desvalorização do excedente dos capitais colocados nos
mercados financeiros, mas certamente não pode evitá-la.
É no centro da lógica da dinâmica da economia dos EUA que nasce a crise. Por
um lado, com um realinhamento dos equilíbrios internos e externos realizado
por drenagem de capitais sustentáveis estrangeiros, o que pode ser
interpretado como uma punção operada pelas classes dominantes dos Estados
Unidos sobre as riquezas do resto do mundo. Por outro lado, no interior dos
Estados Unidos, a mais forte concentração de riqueza desde há um século.
Alguns dados: a parte de rendimentos apropriados pelos 1% mais ricos no
produto total era de 10% há 30 anos, hoje é de 25%; a parte dos que estavam
entre os 10% dos mais ricos era de um terço em 1979, hoje é de 50%. Tudo
isso, devido ao extraordinária inchaço de benefícios financeiros (do capital
fictício) das classes dominantes que distorcerá macroscopicamente a economia
dos Estados Unidos, particularmente a taxa de poupança que se torna negativa
pouco antes da crise. Desta forma, via esfera real, a actual catástrofe.
Como se manifesta?
2. As manifestações da crise
A. As manifestações financeiras e reais
a) A primeira manifestação da crise foi uma brutal destruição de capital
fictício: até 2008, a capitalização total das bolsas mundiais passou de 48,3
para 26,1 milhões de milhões de dólares. Esta espiral descendente no valor
dos activos é acompanhada por uma perda de confiança e falta de liquidez no
mercado interbancário, num mundo que, no entanto, seria super-líquido, sendo
o cenário mais provável o de uma insolvência de numerosos bancos.
Consequentemente, num contexto em que os títulos compostos e os riscos que os
caracterizam estão cada vez pior avaliados (uma vez que não são mensuráveis –
para não falar das aberrações de funcionamento de agências de notação tipo
Moody's), os problemas deslocaram-se do compartimento subprimes para o dos
créditos de créditos imobiliários (capital fictício de grau um para capital
fictício de segundo grau), e depois para os créditos solventes (os primes ),
antes que a implosão da bolha de instrumentos ligados a hipotecas de casas
chegasse a contaminar os outros segmentos dos mercados financeiros e, a
partir daí, o mercado monetário propriamente dito.
E foi então que todo o sistema de financiamento da economia ficou bloqueado.
b) A desvalorização do capital teve uma dimensão real, por via do credit
crunch , pelo desaparecimento do crédito, principalmente empréstimos ao
consumo. As economias entraram em depressão, conjunturalmente desde 2007, mas
também estruturalmente, num mundo em que caem a pique alguns recursos
estratégicos naturais (petróleo em primeiro lugar) e em que a busca de novas
fontes de energia estabelece limites objectivos para o crescimento – e
introduz pressões para entrar em guerra.
Resultado: os indicadores económicos são desregulamentados: queda das taxas
de crescimento, dos intercâmbios comerciais, do consumo das famílias, perdas
operacionais de empresas industriais, desemprego, perda de moradia, de
poupança ...
c) Finalmente, uma dimensão extremamente preocupante desta crise é o
endividamento dos poderes públicos, em particular dos Estados (que, em parte,
"nacionalizaram" a dívida privada), e as dificuldades consequentes
em matéria de finanças públicas, até em instituições locais, especialmente no
que diz respeito aos gastos sociais (educação, saúde, pensões) ...
Daí as reestruturações (através de resgate-reagrupamento) das dívidas soberanas
que se discutem actualmente.
B. E depois há a guerra ...
a) Crise e guerra estão interligadas. Primeiro, economicamente, porque a
guerra está integrada no ciclo, como uma forma de destruição de capital, mas
também politicamente, para a reprodução das condições de manutenção e
continuidade na liderança das fracções dominantes das classes dominantes – as
altas finanças – sobre o sistema global.
Durante a Guerra Fria, o desenvolvimento das forças produtivas deu um grande
impulso aos EUA. Em parte, deveu-se a gastos militares e ao complexo
militar-industrial, através da corrida armamentista e aos progressos técnicos
induzidos (sistemas informatizados, robôs dirigidos por computadores,
internet ...). Hoje, os gastos militares continuam sendo consideráveis (um
quinto do orçamento federal, mais de metade dos gastos militares globais, com
mais de mil bases no mundo) e o complexo militar-industrial continua a
desempenhar um papel fundamental, mas agora sob o controlo das finanças. A
influência das finanças sobre as empresas de armas dos EUA está a crescer e
manifesta-se sob a forma da tomada de controlo da estrutura de propriedade do
seu capital por investidores institucionais, aí colocados pelos grandes
monopólios financeiros: no início dos anos 2000, essa proporção chegou a 95%
do capital da Lockheed Martin, a 75% da General Dynamics, a 65% da Boeing...
Igualmente para as empresas militares privadas, passando uma parte cada vez
maior delas para as mãos das finanças, à medida que o Estado "externaliza"
as suas actividades de defesa: a MPRI foi resgatada pela L-3 Communications,
a Vinnell pela Carlyle, a DynCorp pela Veritas ...
b) Num contexto em que o uso da força armada é a estratégia imposta ao mundo
pela alta finança norte-americana como condição para sua reprodução, e em que
a militarização é um modo de existência do capitalismo, em que o papel do
Estado (neoliberal) é fundamental para o capital (já que é o Estado que vai
para a guerra por conta do capital, e são as agências governamentais as que atribuem
as quantias astronómicas de contratos militares às firmas transnacionais de
armamento, através de lobbying: General Electric, ITT ...), neste contexto,
então, os gastos militares tornam-se uma importante fonte de rentabilidade
para o capital. E, por acréscimo, pode ainda aumentar mais o capital
fictício, sobretudo quando está financiado pela dívida pública.
c) Deve-se assinalar além disso, que as guerras no Afeganistão e no Iraque
foram lançadas num tempo muito preciso – numa altura que já era de crise: a
partir de 2001 (como 1913 e 1938 também foram anos de crise), crise que já
havia surgido no momento das mudanças na política monetária nos EUA, em
consequência do agravamento dos défices internos e externos no país – o
primeiro por causa da necessidade de financiamento associada, em grande
parte, às guerras imperialistas; o segundo, também em grande parte devido ás
deslocalizações, especialmente para a China.
Assim, como resultado da redução do crescimento em 2000, o Fed reduziu muito
fortemente a sua taxa de juros (6,5% em Dezembro de 2000 para 1,75% em
Dezembro de 2001 e para 1%, em meados de 2003), e manteve-o neste nível baixo
até meados de 2004. É precisamente durante este período, um período em que as
taxas de juros reais se tornaram negativas, que se localizam os mecanismos da
crise das subprime , correndo riscos cada vez maiores, especialmente no
sector imobiliário. Devido ao peso do esforço de guerra, em particular, mas
também, principalmente, o Fed foi obrigado a elevar a taxa de juros a partir
de 2004, ou seja, um ano após o início da guerra do Iraque, para 5,5% em
meados de 2006. E um pouco mais tarde, desde o final de 2006, os devedores
começaram a interromper em massa os pagamentos dos empréstimos hipotecários –
vendo-se agravado o número de não pagamentos pela contracção do crescimento e
a estagnação dos salários.
E o Fed manteve essa taxa bem alta, acima de 5%, até meados de 2007, quando
já surgiam todos os sinais da crise. Será só depois de 2007, portanto, muito
tardiamente, que o Fed começa a fornecer aos bancos quantidade de crédito a
taxas reduzidas, muito perto de 0% — sem, por outro lado, evitar os pânicos
financeiros (pânicos modernos, não de gritos dos traders financeiros, mas dos
seus ratos de computador). E a crise explode quando uma massa critica de
devedores encontra dificuldades para reembolsar os empréstimos; o que foi o
caso desde o fim do ano de 2006, depois de o Fed ter voltado a subir a sua
taxa de juros para atrair capitais destinados a financiar os orçamentos militares
dilatados pelas novas guerras imperialistas. E tudo isso sem a vitória
militar dos Estados Unidos, nem reactivação da acumulação pelas destruições
levadas a cabo por estas guerras imperialistas. E o prosseguimento destas
guerras exacerba ainda mais as contradições capitalistas...
3. Quais são os efeitos da crise?
A. No Norte
a) Primeiro, num ambiente de grande incerteza, a criação maciça de moeda e a
fixação de taxas de juro pouco acima de zero, por um lado; a erosão do défice
orçamental (cerca de 10% do produto interno bruto nos Estados Unidos), por
outro lado; e o desmedido crescimento da dívida pública, provocaram uma
depreciação do dólar e uma "guerra de moedas".
Guerra monetária ganha por agora (mas por quanto tempo?) pelo dólar, pela
simples razão de que os Estados Unidos dispõem de uma arma extraordinária,
uma arma "de destruição em massa": o seu banco central pode criar –
sem limites – moeda que é aceite por todos os outros países, porque o dólar
continua a ser a reserva de valor internacional, o que permite aos Estados
Unidos impor ao mundo os termos de uma capitulação que o obriga (ao mundo) a
continuar com as políticas neoliberais, mas também a aumentar a taxa de
câmbio do dólar que melhor convenha à estratégia de dominação dos EUA, mesmo
que isso signifique uma forte desvalorização das reservas cambiais em poder
das autoridades monetárias de outros países, entre os quais a China.
Os Estados Unidos acreditam que um dólar desvalorizado reabsorverá o seu
défice comercial e estimulará a sua produção interna. Isso é um erro, pois
que desde há vários anos que se observa que essas variáveis reagem muito
pouco e cada vez menos, às baixas do dólar. O resultado é, na verdade, um
crescimento muito fraco para os Estados Unidos, que estão numa quase estagnação.
Mas poderá dizer-se: o crescimento do regime neoliberal já era de baixa
intensidade; é verdade, mas a situação agrava-se, porque as causas agora são
devidas a problemas do conjunto de todo o sistema de financiamento das
economias.
Em paralelo, outra perturbação induzida opera sobre os mercados de
matérias-primas, e, muito particularmente, sobre o do petróleo, sobre o fundo
de esgotamento de reservas energéticas mundiais, que provoca o aumento
disparado das cotações.
b) Sabe-se que as piores consequências dos efeitos reais da crise são
suportadas pelos mais pobres entre as classes populares, com danos enormes,
incluindo os Estados Unidos, que são sempre a primeira economia do mundo, mas
com muito maus indicadores sociais em comparação com outros países ricos do
Norte (no que respeita à expectativa de vida, à taxa de mortalidade infantil,
ao direito à saúde ou mesmo á educação).
Os danos incluem, igualmente, no Norte, o mal-estar generalizado,
particularmente em relação ao trabalho (aqueles que ainda o têm ...),
incluindo fenómenos individuais de depressões psicológicas, constatados
especialmente pela medicina do trabalho, chegando até ao suicídio. Quero
falar aqui dos efeitos combinados da ameaça de desemprego e dos métodos de
avaliação individual, que envolvem a competitividade entre os trabalhadores
dentro da mesma unidade de produção. Daí a quebra dos laços de respeito,
lealdade, solidariedade, convivência, daí a desconfiança entre os
trabalhadores, a vigilância, o auto-controle, o medo do trabalho, o
surgimento de patologias da solidão, acompanhada por sentimentos de traição
moral a si próprio, a tomada de consciência da mentira da qualidade total e a
certificação pelo mercado, em universos onde se reduzem os espaços colectivos
para pensar e actuar em conjunto, a perda de sentimentos morais, a perda do
sentido de responsabilidade, e para recuperar os instrumentos de
transformação das relações com o trabalho. Assim se chega a depressões, já
não económicas, mas psicológicas – nas fronteiras da psicanálise.
c) E no plano político, creio verdadeiramente não ter necessidade de insistir
nos riscos da ascensão das extremas direitas, nas suas diversas variantes,
assumindo um aspecto desde o religioso até ao neo-fascismo, passando pelas
derivas da chamada direita "tradicional". E tudo isso sem excluir,
infelizmente, o risco de novas guerras...
B. Efeitos da crise no Sul.
a) Em primeiro lugar, o agravamento de transferências do Sul para o Norte,
através dos vários canais conhecidos: repatriamentos de lucros sobre
investimentos directos ou de carteira, pagamento da dívida externa, conversão
das reservas cambiais em empréstimos (concedidos em seguida aos Estados
Unidos), mas também intercâmbio desigual, fugas de capital, etc. E essas
transferências para o Norte vão ter, mais uma vez, que se acelerar para
tentar financiar o salvamento do sistema capitalista central – sabendo que a
hegemonia dos EUA dispõe da divisa chave do sistema internacional e do
arsenal militar que o acompanha, para impor esta drenagem de capitais do
resto do mundo. Até hoje, os Estados Unidos foram capazes de o impor a todos,
tanto os seus parceiros imperialistas como potenciais rivais (especialmente a
China) – mas por quanto tempo?
b) Os efeitos da crise são variáveis, dependendo das características das
economias do Sul e da sua inserção no sistema mundial. Alguns países estão
tão excluídos deste sistema global e afogados na miséria que a crise parece
não os tocar. Mas tocará a todos eles, sejam "emergentes" ou não.
O sector agrícola, por exemplo, deve ser levado muito em conta na maioria das
economias; mas as disfunções e paradoxos neste sector são gravíssimas: na
verdade, três mil milhões de pessoas sobre a Terra padecem de fome ou
carências alimentares, enquanto que a produção agrícola excede em muito (pelo
menos em 50%) as necessidades alimentares (também aí há crise de
superprodução). Por outro lado, três quartos dessas pessoas são também
agricultores. A expansão das áreas cultivadas em todo o mundo é inversamente
proporcional ao retrocesso das populações rurais em relação ao das cidades.
Uma proporção crescente de terras é cultivada por transnacionais que não
destinam a produção ao consumo, mas a saídas industriais ou energéticas. Na
maioria dos países do Sul que estão excluídos dos benefícios da
"globalização", um dinamismo "relativo" das exportações
agrícolas derivadas das culturas comerciais, coexiste com importações de
produtos alimentares de base.
E até mesmo sugeriria aqui interpretar (sem, é claro, querer reduzir a sua
complexidade) os acontecimentos que estão abalando o mundo árabe-muçulmano, à
luz de um capitalismo que destrói as suas estruturas a longo prazo e na forma
neoliberal deste capitalismo que colocou, sob a alçada de uma good governance
, as bases da explosão social actual; particularmente com o aumento dos
preços dos produtos alimentícios – e durante todo esse tempo, o imperialismo
anda à espreita.
c) Mas acima de tudo, parecem criadas as condições para que uma das
principais consequências da crise seja o confronto Norte-Sul, apesar das
cooptações dos 'G20'. Confronto Norte-Sul num mundo onde os níveis de
contradições se tornam mais complexos: contradições entre as classes
dominantes e as classes dominadas, contradições entre as diferentes classes
dirigentes que dirigem os Estados, contradições entre os próprios países do
Sul...; mas com uma predominância relativa das contradições entre as classes
dirigentes, ligadas ao surgimento dos chamados países "emergentes".
A via interna dirigida por uma grande maioria dessas classes dirigentes é o
caminho capitalista, ou alguma das variantes da via capitalista. Mas esta
via, não só não tem saída, pois a resolução das contradições produzidas pelo
capitalismo é absolutamente impossível no Sul, como também leva a entrar em
conflito com as potências imperialistas do Norte. Assim, um dos riscos que
pesa sobre as lutas populares no Sul é o de ver as suas resistências
confiscados, neutralizadas, transformadas em forças pro-sistémicas pelas
classes dirigentes; mesmo quando estas classes dirigentes do Sul,
especialmente aquelas cuja estratégia é mais coerente e consequente (como na
China), provavelmente, não chegarão a avançar sem transformações internas, no
sentido de uma modificação na relação de forças a favor das classes
populares.
E isso vale para a América Latina – na Venezuela bolivariana, por exemplo.
IV. Terceira parte: Quais têm sido, são e serão as políticas anti-crise?
A. Críticas das políticas ortodoxas
1. As políticas anti-crise, acima de tudo, têm consistido em coordenar as
acções dos bancos centrais para injectar liquidez no mercado interbancário
pela criação de moeda "primária", oferecer linhas de crédito
especiais aos bancos e reduzir as taxas de juros. Na verdade, o objectivo era
evitar o afundamento total do sistema, e também limitar a desvalorização do
capital fictício, travando a queda dos mercados (em especial para que os
derivados fossem pagos o mais próximo possível do seu valor facial), mas isso
não resolveu nenhuma das contradições fundamentais do sistema.
Um momento crucial foi, como se sabe, a não intervenção das autoridades
monetárias – neoliberalismo obriga... – quando da quebra do Lehman Brothers
em meados de Setembro de 2008. Obviamente, ainda não se mediram as
implicações deste imobilismo, pelo menos não em termos de redução dos riscos
de desestabilização de todo o sistema, incluindo através da dívida do Estado.
Daí, em poucas horas, a mudança de direcção de 180º do Tesouro e do Banco
Central: várias instituições financeiras em risco (como a seguradora AIG)
foram nacionalizadas (geralmente sem direito a voto ou novos critérios de
controle); as short sells foram temporariamente suspensas; depois o Fed abriu
linhas de crédito para primary dealers em condições especiais (a taxas de
juros próximas de zero); o Estado ajudou estes dealers na montagem de
resgates aos grupos em quebra e recapitalizou-os – ou seja, susteve, e muito
fortemente, o processo de hipercentralização do poder dos oligopólios
financeiros em estruturas de propriedade do capital cada vez mais
concentradas (o Lehman Brothers foi retomado pelo Citigroup, o Merrill Lynch
pelo Bank of America, o Washington Mutual pelo Morgan ...); criava-se uma
estrutura de "despoupança", uma separação de activos contaminados
para fornecer uma garantia do Estado aos títulos "tóxicos"; e,
medida crucial, em Outubro de 2008, o Fed estendeu o seu dispositivo de swap
lines (ou "acordos temporários recíprocos sobre divisas") aos
bancos centrais do centro e dos principais países do Sul, tornando-os quase
"ilimitados" ...
Em seguida, houve os planos 1 e 2 de Paulson e os planos de apoio
generalizado à economia (incluindo o da General Motors e outros, sem impedir
os despedimentos maciços...), aliás, com recapitalizações do Fed, que já
estava sem fôlego. E, finalmente, no início de 2011, o presidente do Fed
preveniu o Tesouro de que não continuaria a financiar os défices públicos,
que era necessário voltar ao rigor, que havia que aumentar as taxas de juro;
com dois grandes riscos aqui: que nos EUA o fardo da dívida pública se
tornaria ainda mais pesado; e, para o resto do mundo, que os fluxos de
capital iriam servir de novo para financiar os défices dos EUA, e
permitir-lhes novamente voltar a viver acima das suas possibilidades...
E tudo isso sob o olhar dos povos, que compreendem não só que o Estado se
voltou contra os serviços públicos, mas que também os faz pagar o resgate das
altas finanças – que dominam tudo.
2. Face a isso, uma parte – minoritária, mas significativa – das correntes
liberais continua radicalizando-se, na direcção das teses ultra-liberais
inspirada em Hayek, Mises e Rothbard. As suas análises da crise, por exemplo,
por Rockwell e Rozeff do Instituto von Mises, baseiam-se numa fé reafirmada
na natureza automática do reequilíbrio dos mercados.
Obviamente são aborrecidas para os neoliberais, na medida em que defendem que
a crise viria do excessivo intervencionismo e que o Estado não tem que salvar
os bancos e empresas em dificuldades. O que deveria ser feito, dizem, é
acabar com os regulamentos estatais que limitam a liberdade dos agentes no
mercado. Exemplo: enquanto as políticas públicas de habitação pretendiam que
todos os cidadãos tivessem acesso ao imobiliário, os mercados (que não são
"populistas") têm mostrado que não. Estes ultraliberais estão,
portanto, contra todo o plano anti-crise, e em particular contra qualquer
regulamentação das taxas de juro pelo banco central.
Os mais extremistas chegam inclusive a reclamar a abolição pura e simples das
instituições do Estado – incluindo a militar – bem como a privatização da
moeda. Naturalmente que eles estão conscientes de que estas medidas levariam
o capitalismo ao caos, mas pensam que, graças aos mecanismos de mercado, este
caos seria benéfico para o capital e que o capitalismo se reconstruiria mais
rápidamente e melhor do que através de intervenções do Estado em forma de
ajuda pública artificial a empresas que de qualquer forma estariam condenadas
à falência.
3. E as posições reformistas? A gravidade da crise levou a um retorno das
teses de Keynes: "Keynes está agora, mais do que nunca, na ordem do
dia", escreve Paul Krugman – que é um economista neoclássico! Na
verdade, mesmo que se oponham aos neoclássicos tradicionais no que respeita
às intervenções do Estado, as interpretações keynesianas participam da mesma
matriz teórica, diríamos, "burguesa".
Mesmo os mais avançados entre eles, apesar de nuances, variações, subtilezas,
não formulam senão visões apenas "reformistas", que consistem em
introduzir modificações mínimas no funcionamento do capitalismo para
sobreviver o máximo de tempo possível.
O relatório da Comissão Stiglitz pode dar-nos uma boa ilustração disso. O
documento final, elaborado em 2009 a pedido do presidente da Assembleia Geral
das Nações Unidas, não questiona de forma alguma a ideologia dominante. As
velhas certezas neoliberais estão justamente em revisão, mas não para
abandono: as taxas de câmbio devem ser flexíveis, reafirmam-se as virtudes do
livre comércio versus "proteccionismo"; as falhas da corporate governance
estão por corrigir, mas a gestão de riscos continua sendo confiada aos
oligopólios financeiros e a regulação do sistema mundial permanece sob a
hegemonia do dólar dos EUA.
Estamos muito longe da rejeição da liberalização financeira globalizada expressa
por cada vez mais países do Sul – e, não sem contradições, é verdade – da
China popular e da Venezuela bolivariana ...
B. Keynes
1. Sejamos claros: as políticas anti-crise não são keynesianas. Embora sejam
perceptíveis medidas "keynesianas" – desde o plano de G.W. Bush em
2008 (com reversões de uma parte dos impostos, por exemplo) e,
principalmente, com o programa do presidente Barack H. Obama (com obras de
infra-estrutura, etc.) –, a prevalência é ainda para o neoliberalismo para
salvar o máximo de capital fictício sobre-acumulado. A conversão de
emergência de planos de resgate do capital num intervencionismo dos Estados
accionados de maneira tão perfeitamente antidemocrática pelos governos do
Norte não pode servir de ilusão. As políticas anti-crise e os seus
iniciadores não foram extraídos dos dogmas da ortodoxia.
O Fed e outros bancos centrais do Norte continuam a criar moeda primária
maciçamente, como muito recentemente, com o quantitative easing 2. Mas essa
política monetária "keynesiana" aparentemente afundou-se na
realidade numa "armadilha de liquidez", de onde a estratégia de
redução de taxas de juros reais não ser capaz de redireccionar a eficácia
marginal do capital e transferir capital monetário da esfera financeira para
a esfera da produção.
Daí a preocupação actual nos Estados Unidos desde o início de 2011, que é o
endividamento do Estado: do Tesouro, do estado Federal, mas também dos
Estados federados e das colectividades locais. O presidente do Fed (Bernanke)
advertiu recentemente o ministro das Finanças (Geithner) e o Congresso que
era chegada a hora do ajuste orçamental; é claro, que tinha que fazer
exactamente o oposto do que Keynes defendia, quer dizer "limpar a
casa": reabsorver o défice aumentando os impostos e reduzindo os gastos,
através de cortes de pessoal e de salários; ou seja, voltar a carregar todo o
peso sobre os trabalhadores – incluindo a via saúde, as reformas, etc. Idem
para nós na Europa.
Não há, portanto, retorno a políticas "keynesianas", nem nos
Estados Unidos nem na Europa, e a concepção dominante do Estado continua a
ser a do Estado neoliberal, ao serviço do capital, particularmente no que diz
respeito ao sistema de crédito.
2. E mesmo se houvesse (o que é muito improvável) um "retorno a
Keynes" não desapareceriam os problemas.
Em primeiro lugar, os problemas teóricos. Não há em Keynes uma teoria
"geral da crise "; há numerosos elementos teóricos dispersos,
parciais, muitas vezes opostos e que muitas vezes têm dado lugar a confusões
e mal-entendidos por alguns comentadores ou seus discípulos – começando pelo
conceito, complexo, de "procura efectiva" (que melhor seria
entender como uma oferta, enquanto valor esperado das vendas). Keynes
sobretudo procurou uma estratégia de saída da crise para tentar salvar o
capitalismo, encontrando o segredo de um "capitalismo sem crises",
regulamentado, onde a solução é a criação de uma procura efectiva através de
um factor exógeno, o Estado, cuja intervenção poderia, nas fases de
contracção dos ciclos, minimizar o impacto da crise. Ele compreendeu, tal
como também alguns outros, nomeadamente Schumpeter, que o curso da história
ia no sentido da superação do capitalismo. Mas a sua teoria era confrontada
com as dificuldades em lidar com a moeda e o sistema financeiro em particular.
Estes limites de Keynes para entender a crise, quero dizer, limites em
relação a Marx, foram observados por alguns keynesianos lúcidos e honestos,
como o genial Joan Robinson, que cito aqui: "a teoria keynesiana elabora
inúmeros refinamentos e complexidades negligenciadas por Marx, mas o
essencial encontra-se na análise marxista do investimento como "compra
sem venda" e da poupança como uma "venda sem compra." Ao que
Keynes teria respondido, quando Joan Robinson tentou aproximá-lo de Marx num
ensaio publicado em 1942, que: seria inútil "querer dar um significado
aquilo que não o tem".
Mas, acima de tudo, é a propriedade fundamental da moeda para funcionar como
capital, analisada por Marx, que não figura de uma maneira desenvolvida, nem
sequer clara, em Keynes – e obviamente, ainda menos, na teoria quantitativa
da ortodoxia.
3. Esta análise limitada do sistema de crédito em Keynes, e a falta de
diferenciação entre moeda estatal e moeda de crédito, levou logicamente – mas
também abusivamente – a atribuir demasiada importância à moeda, mas
especialmente uma responsabilidade excessiva ao Estado na determinação das
taxas de juro. Segundo ele, o banco central reduz a taxa de juro graças ao
aumento da oferta de dinheiro, pela via da criação "primária" de moeda
para estimular o investimento nos activos onde a eficácia marginal do capital
é mais elevada – e isso, até, supostamente, fazer desaparecer o que chamam os
"aspectos mais chocantes do capitalismo" (o desemprego, as
desigualdades, etc.). Ora bem, sabemos que a política monetária aplicada
pelos bancos centrais, cujos objectivos são estabilizar a moeda e a luta
contra a inflação, subverteu completamente o processo pelo qual se
determinava a taxa de juros no mercado. Usam a taxa de juros como instrumento
principal, com efeitos financeiros e reais sobre toda a economia. E sabemos
que a taxa de juros do banco central é influenciada principalmente pelas
taxas fixadas pelos grandes oligopólios financeiros sobre cada um dos
segmentos de mercado nos quais dispõem de uma posição dominante.
Daí, problemas ou ilusões políticas transmitidas pela concepção do Estado de
Keynes – a crença keynesiana numa capacidade todo-poderosa do Estado, muito
diferente da de Marx. Pois, apesar dos limites da teoria marxista do Estado,
mesmo aí, ela é superior à de Keynes.
O que é hoje o Estado? Não é suportado pelo capital através da dívida
pública, por exemplo? A criação monetária não é, essencialmente, de origem
privada? As taxas de juros do Fed não dependem em grande medida das
determinadas pelos oligopólios? Será que o próprio Fed não é penetrado pelos
interesses particulares dos oligopólios? Não é o Estado que concede contratos
militares a empresas controladas pelas finanças? Não é o Estado neoliberal
tanto ou mais activo do que se estivesse submetido á alta finança?
Em suma, o Estado keynesiano é uma ficção! E o seu "reformismo" não
faz senão espalhar ilusões, falsas esperanças.
Então, quais são as alternativas?
V. Conclusão
A probabilidade de um agravamento da crise actual, enquanto crise sistémica
do capital, é hoje extremamente elevada, dado que se reúnem todas as
condições para tal agravamento. Recentemente as finanças inventaram as CDOs
de CDOs de CDOs ou CDO 3 – mas este jogo de elevações ao cubo vai afundar-se.
Vimos já que a unidade de medida, aqui, é o milhão de milhões de dólares ou
teradólar (10 12 ); penso que "tudo isso vai acontecer" e chegará
antes do petadólar (10 15 ) ! O capitalismo está em perigo e, especialmente,
no centro do sistema. Dirão: houve outras crises, muitas outras, e o
capitalismo sempre saiu delas, mais reforçado, mais monstruoso, mais
monstruosamente concentrado. Sim, também houve, antes do capitalismo crises
pré-capitalistas. Não estou anunciando o fim do mundo. É uma ilusão, talvez
devido à impaciência, acreditar que o capitalismo entrará em colapso sob o
efeito da actual crise: o monstro vai sobreviver e vai prosseguir matando
mais ainda.
Ao longo da história, especialmente desde a Grande Depressão dos anos 30, o
capital foi capaz de forjar instituições e instrumentos de intervenção
pública, essencialmente ligados às políticas dos bancos centrais, permitindo,
em alguma medida, "gerir" as crises e mitigar seus efeitos mais
devastadores, pelo menos no Norte, no centro do sistema mundial; mas sem que
nunca estas reorganizações de dominação do capital suprimissem as suas
contradições. Portanto, ainda vamos sofrer por um longo tempo, até
envelhecer, os males do capitalismo e, no Sul, o " silencioso genocídio
dos mais pobres", do qual este é responsável...
Eu diria, antes, que a situação actual se parece, não com o início do fim da
crise, mas com o início de um longo período de colapso do actual estádio do
capitalismo, oligopolista e financeirizado. E esse processo de afundamento
abre amplas perspectivas de transição, em que a luta de classes vai endurecer
e complicar-se; obrigando-nos a repensar as alternativas de transformações
sociais pós-capitalistas – porque somos cada vez mais, para lá das nossas
diferenças, no querer socialista (e, como se diz, ainda mais... se há
afinidades).
Ora bem, se o problema estrutural para a sobrevivência do capitalismo é uma
pressão descendente sobre a taxa de lucro e se, para ele, a financeirização
não é uma solução sustentável, a única coisa que este sistema vai oferecer,
até à sua agonia, é o agravamento da exploração da força de trabalho.
Para chegar a reactivar um ciclo de expansão no centro do sistema mundial, a
crise que vivemos deveria destruir quantidades absolutamente gigantescas de
capital fictício, extraordinariamente parasitário; mas as contradições do
sistema capitalista mundial tornaram-se agora tão profundas e difíceis de
resolver que tal desvalorização correria o risco de o empurrar para o fundo.
Por outro lado, alguns ortodoxos acreditam que a actual crise vai levar ao
colapso do capitalismo, por exemplo, os analistas de conjuntura do GEAB ou
Global Europe Anticipation Bulletin, cujas previsões de agravamento da
situação desembocam num deslocamento geopolítico no sistema, no colapso do dólar,
no desaparecimento das bases do sistema financeiro globalizado; ou as
previsões da Money & Markets nos Estados Unidos, que também prevêem o
próximo agravamento da crise mas por encadeamentos muito mais tradicionais: o
agravamento do défice orçamental, o aumento da dívida pública, uma defesa
insuficiente do dólar pelas autoridades monetárias, etc.
Para nós, chegou, pois, a hora, da reconstrução de alternativas e propostas
radicais – de esquerda. E entre as questões mais difíceis de tratar estão as
relativas à moeda e às finanças. As relativas à componente externa da
política monetária (aos sistemas de câmbio, junto com o debate que deve ser
aberto por nós sobre a questão da saída do euro, sobre a sua pertença ou não,
sobre a sua debilidade ou não, para reavermos alguma margem de manobra) ou a
propósito da componente interna desta política (que controle político
queremos do banco central?). As do financiamento da economia (como regular
oligopólios financeiros? Ou melhor: como nacionalizá-los e controlá-los
democraticamente). Os problemas do controle do capital estrangeiro, ligados á
balança de pagamentos. Os das estratégias comuns frente á dívida externa. Os
da construção de regionalizações alternativas (com nacionalizações
continentais, para romper com a lógica do sistema e responder às necessidades
sociais dos povos – o que, na realidade, deveria ser o objectivo próprio da
ciência económica). E, finalmente, os problemas das novas formas de
planeamento nas transições socialistas em curso ou para vir – a partir da
teoria (até à supressão da moeda?), mas sobretudo os da participação
democrática dos povos em todos os processos de tomada de decisão relativos ao
seu futuro colectivo.
Certamente, as dificuldades que enfrentamos são muito sérias, mas – não temos
outra escolha – há que ter esperança...
Bibliografia
Herrera, Rémy
- (2010), Un Autre Capitalisme n'est pas possible, 2010, Syllepse, Paris..
- (2010), Dépenses publiques et croissance économique - Pour sortir de la
science (-fiction) neo-classique, 275 p, L'Harmattan, Paris..
- (2010), Les avancées révolutionnaires en Amérique Latine
- Des Transitions socialistes au XXI siècle? , 175 p., Parangon, Lyon.
- Os Avanços Revolucionários na América Latina, Ed. Avante, Lisboa, 2010, 152
p., ISBN: 9789725503713
Do autor em resistir.info:
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